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Trauma E Estresse Em Tempos De Pandemia
Trauma E Estresse Em Tempos De Pandemia
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Trauma E Estresse Em Tempos De Pandemia


Paul Valent

A pandemia da COVID-19 veio à tona no início de 2020. Inicialmente pensamos: outro vírus do tipo corona, nada pior que outros resfriados e gripes, então esperámos e negamos. Até que nos engoliu, e agora estamos contando o número de infectados e mortos.

Nós não estávamos familiarizados com pandemias. O que é que as pessoas pensavam sobre isso? A pandemia era um desastre natural? Ou era uma doença como outras, onde alguns morrem, outros escapam ou ficam em luto? Era a invasão de um inimigo invisível? Ou a pandemia seria uma praga bíblica, juntamente com os frequentes incêndios, tempestades e enchentes, punindo um mundo ganancioso?

Era natural tentar conceituar este perigo desconhecido de acordo com o que já sabíamos. Também era natural preencher a falta de dados científicos com pensamentos mágicos.

Neste capítulo, analisaremos outras circunstâncias com ameaças generalizadas à vida e veremos como suas características se sobrepõem e elucidam a crise atual.

Mortes No Trânsito

Cerca de 40.000 pessoas morrem anualmente em acidentes de trânsito nos EUA e 1,25 milhões em todo o planeta. Além disso, 50.000.000 ficam gravemente feridos no mundo todo. De certa forma, as mortes no trânsito são uma pandemia crônica de baixo grau.

As mortes no trânsito são um excelente exemplo de como se negam e até se difamam os aspectos psicológicos das catástrofes. Historicamente, os sobreviventes são acusados de possuir uma neurose indenizatória, enquanto os fatores psicológicos daqueles que causam os acidentes são quase totalmente ignorados.

De fato, o exame atento, tanto das vítimas quanto dos responsáveis, revela uma grande variedade de disfunções físicas, psicológicas e sociais (Valent, 2007).

Catástrofes Naturais

Desastres naturais, como incêndios, inundações e terremotos, são geralmente eventos circunscritos de curto prazo que não ameaçam o resto da população. A ajuda vem rapidamente de fora para socorrer as vítimas.

As catástrofes têm sido, sem dúvida, as situações traumáticas de massa mais estudadas cientificamente. Elas revelaram que os eventos traumáticos apresentam diferentes fases: pré-impacto, impacto, pós-impacto, recuperação e reconstrução. Tem se notado, também, que as repercussões dos desastres se espalham para vítimas secundárias, tais como socorristas e crianças, e podem inclusive apresentar consequências através de gerações.

Geralmente, a mortalidade e a morbidade de todos os tipos de doenças aumentam na proporção da gravidade e duração de estresses e traumas específicos. A natureza do que os sobreviventes, as vítimas secundárias e as comunidades experimentam varia muito nos cenários físicos, psicológicos e sociais.

Os primeiros pesquisadores encontraram, por exemplo, sintomas tão variados quanto reviver constantemente os desastres (PTSD), mas também confusão, apatia, tristeza, depressão, sentimento de culpa dos sobreviventes, vergonha, desesperança, alienação e a luta por um sentido.

Valent (1984, 1998), após o incêndio da Quartas-feiras de Cinzas na Austrália, classificou estas respostas variadas de acordo com as manifestações biológicas, psicológicas e sociais dos impulsos de sobrevivência, que vão desde os instintivos até as dimensões espirituais, passando pelo tempo e pelas pessoas. Por exemplo, um homem acreditava que um anjo aparecia nas chamas e que suas asas estavam prestes a envolvê-lo. Um menino acreditava que sua mãe furiosa era uma bruxa e tomou um comprimido mágico para afastar o mal dela.

As catástrofes têm destacado o fato de que os socorristas em geral são afetados secundariamente, especialmente se seus esforços de resgate falharem. Eles podem reagir com empatia à angústia das vítimas ou sentir culpa e vergonha por não ter sido capazes de ajudá-las.

Na verdade, os traumas das vítimas se irradiam não apenas para os socorristas, mas também para os membros da família e da comunidade, e podem ressoar através de gerações.

Guerras

As guerras, mais do que os acidentes de trânsito, demonstraram extrema inadmissibilidade e negação dos sintomas psicológicos nos soldados. Suas queixas foram tratadas como fingimento e covardia. No entanto, milhões de soldados, muitos deles condecorados, ficaram alquebrados, provando que todos eram vulneráveis a extremos de estresse e trauma.

Embora as consequências psicológicas do combate tenham sido registradas desde os gregos antigos, foi somente no século 17 que Hofer compilou a excitação, ‘imaginação’, sintomas gastrointestinais, torpor, prostração e depressão em soldados suíços em uma síndrome que ele chamou de melancolia. Este conceito durou 150 anos, até que na Guerra Civil Americana a saudade de casa (chamada de nostalgia) e a falta de disciplina foram acrescentadas à melancolia.

Na Primeira Guerra Mundial, após alguma resistência inicial, foram reconhecidos sintomas de estresse físico, principalmente do coração. Coração irritável, astenia neurocirculatória e síndrome do esforço eram diagnósticos comuns. Foi adicionado o choque de bombardeio, que se pensava que era o resultado de explosões que causavam um mínimo de dano cerebral. Eventualmente, doenças psicológicas traumáticas puras tiveram que ser reconhecidas devido ao grande número de colapsos mentais.

O trabalho seminal que emergiu da Primeira Guerra Mundial foi o de Abram Kardiner (1941), The Traumatic Neuroses of War. Kardiner descreveu uma grande variedade de sintomas relacionados a eventos traumáticos e que poderiam ser revividos em pesadelos e flashbacks. Eles poderiam se fundir com outras neuroses e sintomas físicos. Kardiner enfatizou que todos os sintomas eram significativos em termos de traumas anteriores, mesmo que esses traumas estivessem inconscientes.

Curiosamente, a chamada pandemia da gripe espanhola de 1918, que matou 50 milhões de pessoas em todo o mundo, e também devastou os combatentes da Primeira Guerra Mundial, não foi mencionada entre as baixas de guerra de cada lado do conflito, a fim de não revelar a vulnerabilidade militar de cada um. Este foi um exemplo flagrante de como as forças políticas podem suprimir o reconhecimento e o tratamento de pandemias. A gripe foi chamada de espanhola porque a Espanha, neutra na guerra, reconheceu a existência da gripe.

Na Segunda Guerra Mundial, as lições da guerra anterior tiveram que ser reaprendidas. Como o próprio trauma, as neuroses traumáticas foram reprimidas. Este é um aviso de que as lições da atual pandemia não devem ser esquecidas.

Uma vez reconhecidas as sindromes de combate, seguiu-se um novo tipo de pesquisa científica. Descobriu que os colapsos psicológicos estavam associados à intensidade e duração da ameaça de morte e ao número de camaradas mortos. Em unidades gravemente estressadas, todos os soldados acabaram por entrar em colapso. Aprendemos que, independentemente dos pontos fortes e vulnerabilidades das pessoas, todos acabavam sendo afetados.

A Segunda Guerra Mundial revelou a importância do moral. A moral consistia na motivação para atingir objetivos importantes e na confiança na capacidade de fazê-lo. Consistia também em ter uma identidade concebida como sendo parte de um grupo, sendo o grupo mais importante do que o indivíduo. O grupo era o corpo, o líder sua cabeça e a pessoa uma parte do corpo. A moral era o antídoto para a ansiedade de aniquilação.

Com a derrota dos objetivos e a perda dos camaradas, a confiança fraquejava e a desmoralização se instalava. O grupo militar perdia seu ‘esprit de corps’. Os indivíduos se sentiam abandonados em um mundo perigoso sem um bom motivo. A disciplina entrava em colapso, os oficiais eram mortos por seus homens e atrocidades ocorriam.

Como na Primeira Guerra Mundial, Grinker e Spiegel (1945) validaram as descobertas de Kardiner sobre uma ampla gama de respostas em soldados traumatizados. Eles se referiam à “ruptura de combate” como “um desfile passageiro de todo tipo de sintomas psicológicos, psicossomáticos e comportamento desadaptado”. Seja depressão, histeria, sintoma somático, fobia, etc., todos os sintomas eram mais uma vez compreensíveis pelos incidentes traumáticos sofridos pelos soldados.

Bartemeier et al. (1946), acrescentaram às descobertas de Grinker e Spiegel uma espécie de quadro traumático definitivo da guerra. Eles o chamavam de “exaustão de combate”. Suas características eram fadiga, lentidão, retração, morosidade e perda de concentração e interesse. Em sua forma completa, os jovens soldados pareciam homens velhos que andavam como autômatos, totalmente exaustos, retardados e apáticos.

Pós-guerra. Pela primeira vez, foi dada muita atenção aos soldados que voltavam. Tornou-se óbvio que em muitos soldados os sintomas não eram claros quando estavam longe do combate. Eles poderiam até durar décadas. Além disso, os sintomas podiam irromper meses ou mesmo anos após a guerra. Ainda vívidos, os sintomas da guerra, com o tempo, se entrelaçavam com tensões e traumas civis.

Profissionais de Saúde Mental. Também pela primeira vez, os profissionais da saúde mental foram submetidos a observação. Descobriu-se que a maioria dos psiquiatras se viam como parte do esforço de guerra. Eles negavam os colapsos mentais; ao invés disso, pressionavam os soldados a fazer maiores esforços e davam diagnósticos pejorativos, tais como fingimento, quando esses esforços falhavam. Mais uma vez vemos como a política de poder pode influenciar o discurso científico mental.

A Guerra do Vietnã. Com a derrota, a desmoralização se manifestou em má disciplina, dependência de drogas, recusa de lutar, assassinato de oficiais e atrocidades. Subjetivamente, os soldados se sentiam alienados, entorpecidos, zangados, culpados, incapazes de confiar e amar. Eles eram desprovidos de senso de justiça, moralidade, significado e propósito.

Dos que retornavam, 38% se divorciavam em seis meses. Um terço dos prisioneiros federais eram veteranos do Vietnã. Ainda assim, mais uma vez as consequências para a saúde mental de veteranos em agonia foram negadas.

Eventualmente, eles foram às ruas para que sua angústia fosse reconhecida. Foi somente então que a política da psiquiatria lhes concedeu um diagnóstico - transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Ele continha um reconhecimento limitado de todas as aflições que os veteranos estavam revivendo ou suprimindo.

Civis Durante a Guerra. Apesar de suas circunstâncias serem diferentes, os civis também estão ameaçados de morte e ferimentos. A extensão do dano mental depende de circunstâncias semelhantes às dos soldados: fé e liderança, o grau e duração da destruição, vitória ou derrota, e a proporção da população e dos entes queridos mortos ou feridos.

Na blitz de Londres a moral era alta, exceto na minoria que foi gravemente afetada. A natureza de seus distúrbios mentais era variada, como com os soldados. Em Hiroshima, após a explosão da bomba atômica, a população sobrevivente se assemelhava a soldados com exaustão de combate.

Crianças Durante a Guerra. Mesmo quando protegidas por adultos, as crianças vivenciam os bombardeios e o caos, e absorvem os medos e as emoções dos adultos. A vulnerabilidade das crianças se reflete em suas taxas relativamente altas de morbidade e mortalidade em comparação com os adultos. E quando o escudo protetor dos pais é arrancado, o sofrimento das crianças é extremo. Em crianças pequenas os sintomas psicossomáticos e comportamentais dominam a expressão de sua angústia. As crianças mais velhas sofrem sintomas semelhantes aos dos adultos.

O Holocausto

O Holocausto foi a perseguição mais completa e generalizada de um povo na história. Isso provocou a morte de seis milhões de judeus. As consequências deste genocídio foram bem documentadas e têm sido estudadas ao longo de três gerações.

No período que antecedeu sua aniquilação, foram relatados um aumento de doenças psiquiátricas, suicídios, hipertensão e angina. Em campos de concentração a metade dos prisioneiros morreram em poucas semanas. Alguns, chamados de mexilhões, pairavam entre a vida e a morte. Eram pessoas emaciadas, de aparência velha, emocionalmente entorpecidos e com deficiências cognitivas. Seus reflexos de sobrevivência desapareciam e eles pareciam silhuetas de humanidade. A maioria morreu. Se assemelhavam aos que sofriam de exaustão de combate, mas estavam traumatizados em outro nível, o último.

Aqueles que sobreviveram ao Holocausto, o fizeram através de uma combinação de sorte e intensa determinação, esperança e a manutenção da motivação. No entanto, no pós-guerra eles sofreram uma série de doenças biológicas, psicológicas e sociais. Nas décadas seguintes, suas taxas de morbidade e mortalidade foram mais altas do que as do resto da população.

Sequelas psicológicas do Holocausto, apesar de enormes, foram mais uma vez negadas por duas décadas. Inicialmente foram reconhecidos os sintomas físicos. Finalmente, era óbvio que os sobreviventes do Holocausto sofriam uma grande quantidade de sintomas e problemas.

Os sobreviventes eram atormentados por perdas irreconciliáveis, a culpa do sobrevivente, raiva, desespero, depressão, doenças psicossomáticas e perda de sentido e propósito. Eles tentaram encontrar esse sentido em casamentos rápidos, ter filhos e trabalho duro.

Crianças. Nove décimos (um milhão e meio) de crianças judias foram assassinadas no Holocausto. A maioria dos que sobreviveram foram separados de seus pais, escondidos por estranhos. As crianças entorpeceram seus sentimentos, foram supremamente obedientes e viveram o dia a dia esperando um fim milagroso para seu sofrimento.

Após a guerra, foi negado às crianças o reconhecimento de seus sofrimentos. Elas tinham que lidar silenciosa e inconscientemente com suas experiências de guerra, que, sem serem reconhecidas, ainda permeavam nelas. Elas lidaram silenciosamente com as perdas de sua infância e de seus sonhos. Conforme um dos autores (PV), as crianças sobreviventes do Holocausto foram reconhecidas somente nos anos 90, quando as estavam na casa dos cinquenta (Valent, 1994). Foi somente então que começaram a processar seus traumas.

A geração seguinte aos sobreviventes foi grandemente influenciada pelo Holocausto através de seus pais. Eles carregavam emoções negativas, sensações, imagens, julgamentos e atitudes que eram incompreensíveis para seus filhos, pois os pais frequentemente mantinham uma conspiração de silêncio sobre suas experiências e sobre o que as crianças significavam para eles.

Os Responsáveis e Seus Filhos. A Alemanha nazista produziu extremos de violência e atrocidades, mas elas poderiam ocorrer em outros lugares, como as que foram documentadas no Vietnã.

Antecedentes de violência são tão amplos quanto os de trauma. Eles incluem relações familiares pobres, privação, pobreza e tumultos sociais. As pessoas podem usar o medo, a pressão do grupo, a desumanização e o oportunismo para cometer atrocidades que seriam odiosas em circunstâncias normais (Valent, 2020).

Filhos dos responsáveis vivem um dilema. Eles podem se identificar com seus pais e avós, como fazem alguns neonazistas, ou precisam se dissociar dolorosamente deles.

Agressão Física; Violência Doméstica; Violência Sexual