- O pessoal da vila não gosta do meu filho. Quando ele ficou doente, ninguém quis me ajudar a cuidar dele. â ela contou.
- No último fim de semana fez muito calor. Zara foi dormir com o filho na área murada, uma cobra entrou lá e matou o menino. Ele tinha apenas nove meses de idade.
- Alguns dos familiares ficaram contentes por ele ter morrido, dizendo que foi a vontade de Deus. â prosseguiu Zara. - Ficaram contentes que o sangue do Boko Haram foi retirado da famÃlia, que Deus atendera suas preces.
O tio prosseguiu.
- Ãs vezes ela pensa em ir à escola para se tornar médica e ajudar as pessoas. Mas quando a insultam, ela fica brava e com vontade de voltar para a floresta. Sempre fala do marido dela no Boko Haram. Contou que ele era gentil, e queria que ela voltasse para ele. Esse tipo de conversa não era nada mais do que um sinal de desespero, porque a vida de Zara se tornara tão ruim, que à s vezes ela tinha vontade de embarcar numa missão suicida.
- E ela vai fazer isso no dia em que lhe derem essa oportunidade. âconcluiu.
Alice discordou.
- Há tanta confusão no rosto e nas respostas dela; não é uma assassina, é apenas uma criança.
Zara olhou para Alice com lágrimas nos olhos, e fez um comentário final.
- Muitas vezes tenho um desejo enorme de sumir na floresta, mas espero que com o tempo eu consiga esquecer o que o Boko Haram e o pessoal da minha vila fizeram comigo. Mas ainda é cedo para isso.
Triste, com raiva e confusa, ela se sentia abandonada pela famÃlia e estigmatizada pela sua comunidade.
Ao sair, Alice expressou sua preocupação.
- A comunidade é responsável por continuar abusando de meninas que não foram quem gerou essa situação. Se continuarem estigmatizando pessoas traumatizadas, podem estar criando algo que será muito, muito mais problemático no futuro do que o Boko Haram é hoje. Sem terem tido culpa nenhuma, essas vÃtimas não são bem recebidas de volta pela sociedade, e ninguém quer ajudá-las. Estou tentando fazer o governo ajudar as vÃtimas na sua reintegração, demonstrando preocupação e compreensão.
Tess saiu, abanando a cabeça. Entrou no carro de Alice e voltaram para a base. Na última vinda à Nigéria, depois da operação a equipe se recolheu no bar do hotel, e desta vez não foi diferente, à exceção de Tess pedir um uÃsque duplo com gelo. Tomou o segundo, até começar a acalmar seus nervos costumeiramente inabaláveis. Carmen havia parado de beber por causa do bebê, mas nesse dia resolveu abrir uma exceção. Até Alice tomou um copo de vinho. O trio havia superado o fato de terem passado tão perto da morte.
- Não sei o que houve com vocês, garotas. - começou Claudine, assim que as coisas se acalmaram. - Não sou avessa a se arriscar, mas desta vez vocês passaram dos limites.
- Não posso discordar de você, Claudine, - respondeu Tess â mas eu não poderia aceitar a ideia de uma menina da idade da Aara se explodindo. Então ela encarou Carmen, que estava pálida.
- Carmen, se você fizer isso de novo, vou lhe dar uma surra.
Ainda tentando controlar o enjoo, Carmen fingiu um sorriso.
- Não me venha com lorotas, Tess. Você sabe que acreditamos nos quatro mosqueteiros, tipo âum por todos, todos por umâ.
- Daqui para a frente, você está de castigo. Aposto que o Nicola vai concordar comigo. Tenho certeza de que ele quer ver o filho dele nascer.
- O nome dele é Luca. â disse Carmen casualmente.
- Ã um menino? Por que esperou tanto para me contar?
- Sei guardar segredos. Nem o pai dele ainda sabe.
Antes que Tess pudesse dizer qualquer coisa, Alice disse que tinha uma notÃcia. Iria se casar com o General Okafor.
- Isso é ótimo, Alice. Você sempre dizia que não queria se casar. O que a fez mudar de ideia?
- Somi é um homem moderno, bem educado. Eu o respeito e tivemos a mesma ideia sobre como levarÃamos a nossa vida de casados.
Claudine ficou perplexa.
- E que método é preciso para isso?
- Vou manter a minha independência, continuar tocando música junto com as ValquÃrias. O Somi e eu vamos ficar em pé de igualdade, e eu não vou aceitar ordens sobre o que devo fazer.
- Fico surpresa com o general ter aceito isso. â comentou Tess. - Pelo andar da carruagem, ele está prestes a se tornar um homem muito importante no governo, e vai precisar de uma esposa bela e submissa para conduzir pelo braço.
- Não vou ser submissa, mas vou apoiá-lo se ele me apoiar da mesma forma. Não acho que vamos ter qualquer problema, nós nos amamos.
Galina ergueu a mão.
- Este casamento eu não perco!
- Nem eu! â concordaram Tess, Carmen e Claudine.
Todas se abraçaram e começaram a discutir os detalhes do casamento.
Jake e Nicola entraram no bar, com cara de cansaço de quem passara o tempo mexendo com motores. Seus rostos tinham borrões de fuligem, e os macacões pareciam ter levado um banho de óleo.
- Lá vêm os mecânicos! â disse Carmen. - Não resistiram à tentação de meter a mão na graxa?
- Estávamos ensinando ao pessoal daqui o modo correto de consertar os aviões. Tivemos de dar uma incrementada num dos motores. à praticamente certeza que o pessoal local consegue assumir isso daqui por diante. Mais à frente, vou voltar para a Nigéria, ver como estão se saindo.
Tess ergueu o copo.
- Um brinde aos homens lambuzados de óleo. Agora já podemos voltar para casa.
- Nós precisamos de uma cerveja bem gelada. â disse Jake.
Enquanto a equipe conversava sobre suas aventuras, Jake pegou Tess pela mão e a levou a um canto mais discreto do bar.
- Tess, contaram-me o que aconteceu. Não acredito que você arriscou a sua vida e a das suas amigas para desarmar uma mulher-bomba suicida. O que lhe passou pela cabeça?
- A menina estava drogada e apavorada, então eu me arrisquei, e consegui convencê-la a não detonar os explosivos que estavam amarrados ao seu corpo.
- Tess, deve ter percebido que a chance de isso dar certo era mÃnima, e mesmo assim entrou com tudo. Em que universo disseram que você é indestrutÃvel? Não percebeu que estava pondo em risco as vidas de Carmen e Alice? E iria querer que Aara e eu enterrássemos o que restasse de você? Você foi valente, porém irresponsável. Ãs vezes eu gostaria que pensasse um pouco, antes de cometer loucuras.
- Jake, você está fazendo tempestade num copo dâágua. Eu precisava fazer alguma coisa, e no fim deu tudo certo, então me dê uma folga.
Jake se afastou, ainda furioso... e abalado.
Claudine observara a discussão entre Jake e Tess do outro extremo do bar. Ela entendia o que Jake vira em Tess: ela era linda, destemida e carinhosa. Mas também era impetuosa, e às vezes isso aborrecia o metódico Jake. Esta era a oportunidade dela. Claudine tinha planos concretos para roubar o marido de Tess.
6. ARMAS PERDIDAS
O
repositório de armas nucleares da Coreia do Norte ficava num bunker profundo, de segurança máxima. Um comboio levando um pelotão de soldados parou no portão, e o coronel no comando desceu do primeiro caminhão para mostrar os papéis aos guardas. Após um rápido exame, deixaram-no entrar.
Lá dentro, o coronel foi levado à sala do comandante da unidade. Depois das saudações de praxe e elogios ao LÃder Supremo, o coronel informou ao comandante que viera buscar duas armas, para levá-las a um local secreto onde passariam por testes especializados.
O comandante da unidade já havia recebido a autorização para essa transferência algumas horas antes de o coronel chegar, e estava pronto para a entrega. Um caminhão do comboio entrou na unidade, e soldados carregaram as armas na sua plataforma. Ao sair, os soldados do coronel repentinamente sacaram suas armas e mataram, não só o comandante da unidade, mas todos os seus soldados. Os atiradores partiram rapidamente com sua carga, duas bombas nucleares de cinco quilotons cada.
Na cabine do primeiro caminhão, um jovem oficial não estava muito satisfeito.
- Teria sido melhor não ter de matar todos aqueles camaradas na unidade. â disse o Major Pang, subalterno do coronel.
- Você sabe tão bem quanto eu que esta operação precisa parecer um sequestro de armas feito por alguma entidade inimiga. Nossos camaradas pereceram defendendo sua unidade, e é assim que irá parecer. Tenho certeza de que serão tratados como heróis por terem morrido defendendo a sua base. Agora, prepare-se para carregar o navio.
O comboio dirigiu-se celeremente até o porto de Haeju, no sul, e parou num cais onde uma banheira enferrujada havia atracado. Marinheiros do contingente local ajudaram a passar as armas nucleares do caminhão para a embarcação. Assim que o barco ficou pronto para partir, o coronel deu a ordem para seus soldados executarem os marinheiros.
A embarcação partiu imediatamente com rumo oeste, sem ser importunada pelas autoridades portuárias. Elas também haviam sido dizimadas.
O pequeno e velho navio fora registrado em Serra Leoa, usando o que é conhecido como bandeira de conveniência, uma tática comum usada por empresas marÃtimas para se esquivarem de regulamentos ou taxas. Neste caso, o objetivo era encobrir o fato de que aquele barco enferrujado efetivamente partira da Coreia do Norte.
O navio seguiu rumo ao seu destino no Oriente Médio. Foi contornando a costa da China, virando para o sul nas ilhas Paracel, seguindo a costa do Vietnã, atravessando a Malásia, passando pela Ãndia, cruzando o estreito de Ormuz, e chegando a uma praia deserta perto de Basra, no sul do Iraque, onde desembarcou sua carga oficial de diversas mercadorias. Pouco depois, transladaram furtivamente as armas até a costa, onde as trocaram com membros do grupo terrorista chamado Estado Islâmico por uma mala repleta de dólares americanos. Os norte-coreanos deixaram lá dois técnicos com a missão de ensinar aos terroristas como usar essas bombas. O restante da tripulação partiu de regresso para o seu paÃs, para entregar a mala de dinheiro ao governo de Kim. Embora tivessem ganas de desertar, precisavam voltar à Coreia do Norte, pois suas famÃlias estavam sendo mantidas em cativeiro até que eles retornassem depois de uma missão bem sucedida.
Tão logo entregaram o dinheiro, as autoridades os elogiaram pelo seu patriotismo, e os executaram a tiros. Suas famÃlias inteiras já haviam sido assassinadas, antes mesmo de eles porem os pés em terra firme.
Alguns dias depois, o nome daquele barco apareceu numa lista do Conselho de Segurança da ONU impondo sanções a 31 embarcações norte-coreanas. Infelizmente, já era tarde demais. A carga mortal havia sido entregue.
Enquanto isso, um alerta norte-coreano revelou que as armas nucleares haviam sido roubadas por extremistas islâmicos que, ao fazê-lo, mataram todos os soldados coreanos que defendiam o local onde estavam guardadas. O comunicado ficou restrito à s poucas agências governamentais que era preciso informar, e não foi ostensivamente revelado a embaixadas estrangeiras, com a explicação de permitir que o governo da Coreia do Norte pudesse conduzir suas investigações. A notÃcia vazou deliberadamente um pouco depois, lançando uma série de alertas a todos os paÃses potencialmente ameaçados pelo ocorrido. Até então, tudo ocorrera conforme planejado. O governo da Coreia do Norte era visto como vÃtima de um ato odioso, o roubo de armas nucleares cometido por terroristas. Não é possÃvel dizer se alguém no Ocidente acreditou nessa história quando ela finalmente foi publicada.
7. UM RIO DE IMIGRANTES
D
epois do projeto na Nigéria, Tess não havia desistido de sua ideia de ajudar a resolver a crise dos refugiados na Europa. Jake continuava se negando a considerar a possibilidade de envolvimento numa empreitada dessas, porém Tess acabou por convencê-lo a, pelo menos, passar pela Alemanha para ver a situação em primeira mão. Foram até algumas cidades menores onde havia muita atividade de imigrantes. Chegaram à catedral de Colônia bem na hora de ver imigrantes muçulmanos fazendo tumulto durante as comemorações de Ano Novo. Muitas mulheres alemãs haviam sido assediadas, intimidadas e até estupradas. Tiveram as mesmas ocorrências em Hamburgo. A polÃcia local não estava equipada para lidar com um evento inédito como esse, e Colônia logo se tornou o sÃmbolo dos problemas que uma imigração maciça de homens muçulmanos causaria à segurança das mulheres alemãs.
Depois de Munique, Tess e Jake passaram alguns dias em Erfurt, na Alemanha. Deixada praticamente incólume pela II Guerra Mundial, a pequena cidade parecia um vilarejo de conto de fadas congelado no tempo, com ruas de pedra no centro, casas antigas pintadas em tons pastel, e igrejas com algumas das torres mais bem conservadas na Alemanha.
Depois de terem se hospedado num pequeno hotel, Tess e Jake percorreram as ruas daquela cidade aprazÃvel, e perceberam uma multidão se formando no ginásio da escola. De curiosidade, resolveram entrar. A prefeitura havia comunicado que, na noite anterior, um grupo de imigrantes sÃrios havia sido abrigado na vizinhança. Os moradores não pareciam nada contentes. Na verdade, parecia que o povo estava ficando revoltado.
Uma senhora idosa ergueu a mão:
- O que vamos fazer com toda essa gente? Precisamos construir uma mesquita? Eles vão nos acordar com suas orações toda manhã?
Outra mulher perguntou:
- O que será das nossas crianças? Como vamos protegê-las?
Um homem jovem gritou:
- à preciso acabar já com isso! â e recebeu uma calorosa salva de palmas.
Outro homem se ergueu, visivelmente irritado.
- Os muçulmanos não comem carne de porco, certo?
Era uma pergunta válida, considerando-se que as salsichas e linguiças de porco eram uma especialidade local. Ironicamente, eles teriam de lidar com quatro mil imigrantes, a maioria deles vinda de paÃses muçulmanos, que o governo federal pedira à cidade para abrigar e cuidar.
A SRD, a empresa de Jake e Tess, ainda era credenciada pela ONU, em função do seu trabalho anterior envolvendo o tráfico de pessoas. Essas credenciais serviam para lhes abrir portas e ter acesso a autoridades no mundo inteiro, então foram conversar com o prefeito local.
Ele parecia cansado e estressado.
- Erfurt está mudando, â disse ele. - Acabamos de inaugurar um lar para imigrantes ao lado da minha casa. Minha filha caçula tem uma colega afegã na classe dela. A menina anda numa cadeira de rodas, porque foi atingida por estilhaços de granada na terra dela.
Jake ficou perplexo.
- Como o governo federal conseguiu persuadi-lo a acolher tantos imigrantes na sua cidade?
O prefeito lhe passou uma folha de papel com timbres oficiais.
- O governo não nos deu outra opção. Simplesmente nos impôs uma quota de gente que terÃamos de acolher. A Alemanha já recebeu mais de um milhão de pessoas buscando asilo, muitas delas com ideias bem diferentes sobre como a sociedade deveria funcionar. Não sei como podemos absorver tantos muçulmanos que nem mesmo falam alemão, quase não têm recursos, e não sabem fazer nada de útil.
O prefeito parecia ter estado à espera de ouvidos compassivos, porque continuava a descrever suas apreensões.
- Para acomodar os refugiados, não só saÃmos correndo atrás de alojamentos para eles, mas também intérpretes, professores, assistentes sociais, policiais, salas de aula, e isso sem falar em empregos e dinheiro. Muitos dos cidadãos generosamente acolheram os primeiros imigrantes, mas outros estão preocupados, ainda não estão convencidos de que os benefÃcios dessa imigração valem o custo, o transtorno, e a transformação da nossa identidade alemã.
Tess quis saber mais.
- Parece que o seu povo está se esforçando muito para isso dar certo.
- Por enquanto, esta cidade está se adaptando. â disse o prefeito. - Avisados com meio dia de antecedência, conseguimos transformar o que era um centro de convenções num abrigo temporário para 674 pessoas. Ocupamos as camas para hóspedes em 19 lares com imigrantes, e já achamos outras possibilidades. Ontem à noite usamos um bordel desativado para abrigar pessoas vindas da SÃria. O lugar acabou se mostrando bem adequado para essa finalidade: quartos pequenos com banheiros privativos. Cobrimos as paredes cor de rosa com tinta branca.
O prefeito levou Jake e Tess até a central da equipe de crises da cidade. Toda manhã reuniam-se ali os bombeiros, assistentes sociais, diretores de escolas, gestores de serviços de saúde, e membros do comitê de finanças para descobrir como lidar com a escassez de alojamentos para outros imigrantes que já estavam a caminho. A cidade elaborou um plano experimental de usar mais de 13 dos ginásios de escolas da cidade para abrigar os refugiados.
- Tivemos de cancelar todas as aulas de educação fÃsica e proibir os clubes esportivos locais de usarem essas instalações até segunda ordem â explicou o prefeito, meneando a cabeça.
- Agora temos receio de que os pais se rebelem. â prosseguiu ele. - Um mês atrás, pedimos à s pessoas que aceitassem os imigrantes como vizinhos, mas agora estamos invadindo a vida delas. Estamos tirando aulas de nossos filhos, e seus times de futebol também. Não há outra opção.
O gerente de uma empresa que vendia contêineres habitáveis aguardava fora do escritório do ginásio, e contou que as entregas estavam com até 25 semanas de atraso.
O estoque de camas dobráveis na Alemanha estava acabando. A cidade encomendara cinco mil camas e colchões da Ikea da Polônia. Um funcionário passou uma hora ao telefone tentando comprar chuveiros portáteis.
- Estão em falta. â disse ele.
Depois, Tess e Jake foram conversar com Sabine Bauer, diretora de uma escola, que estava aconselhando suas colegas da cidade inteira em busca de orientações sobre como lidar com as crianças imigrantes.
- Eu aviso que vão precisar de toda uma infraestrutura para isso. â disse ela.
Sua escola tinha uma âunidade de integraçãoâ, composta por uma assistente social, uma psicóloga e uma professora que falavam árabe. Algumas das professoras estavam fazendo cursos para ensinar o alemão para estrangeiros. Também tiveram de comprar novas grelhas para servir as crianças muçulmanas com linguiças de frango e peru, em lugar das locais, que eram feitas com carne de porco.
- Há muita gente insatisfeita com a atenção e os recursos que estamos destinando aos estrangeiros, tanto dentro como fora da escola. â disse Sabine. - Na Alemanha, um refugiado aceito como tal recebe um apartamento, assistência médica, um curso de alemão e 399 euros por mês. Muitos dos nossos, aqui da cidade, estão desempregados, e numa situação mais difÃcil que essa. Não conseguimos integrar os desempregados na nossa sociedade, e então nos mandaram achar um modo de integrar os refugiados.
De volta a Munique, Tess e Jake assistiram aos noticiários na TV, e conversaram com amigos alemães sobre a situação. Não havia dúvida de que os alemães estavam ficando decepcionados com a decisão da Chanceler Merkel, de deixar mais de um milhão de refugiados muçulmanos virem para a Alemanha. As autoridades locais estavam no limite de sua capacidade. Bilhões de euros haviam sido gastos, e o problema parecia não ter fim. A imprensa relatava casos de estupro cometidos por imigrantes na Suécia. A Dinamarca havia declarado que não receberia nenhum imigrante ou refugiado. A Hungria fez igual. A França expulsou os refugiados que tentaram entrar pelo norte da Itália. Havia pressão polÃtica no Reino Unido para não aceitarem refugiados. Até o ex-chanceler da Alemanha disse que abrir as portas para uma quantidade ilimitada de refugiados foi um erro, complementando com sua opinião de que Angela Merkel âtinha coração, mas não contava com nenhum planoâ.
Três eleições estaduais importantes se avizinhavam, e parecia inevitável que o partido populista Alternativa para a Alemanha, o AfD de extrema direita, conseguisse fazer avanços consideráveis. Merkel levaria a culpa, e seu apoio havia desabado. Se seu Partido Democrata Cristão lhe virasse as costas, ela poderia até perder a chancelaria. A Europa sem a liderança de Merkel iria afundar.
Durante o café no apartamento de seus amigos alemães, Tess perguntou:
- Por que Merkel, sempre tão prudente, resolveu fazer isso?
- Porque nós, alemães, estamos tentando nos redimir do que os nazistas fizeram na II Guerra Mundial. â explicou Elfriede. - E também porque ela tem bom coração.
- Mas o que ela está fazendo não tem muito sentido. Estamos falando de acolher mais de um milhão de pessoas com religião e cultura radicalmente diferentes.
- Acho que Merkel fez a coisa certa, porém não estabeleceu limites. - completou Elfriede. - A questão agora é como ela irá lidar com as consequências. A Alemanha não tem condições de acolher mais refugiados.
Jake estava lendo o jornal local. Em duas semanas ele havia aprendido o suficiente de alemão para conversar e ler a linguagem complicada quase razoavelmente.
- O que você acha da situação, Jake?
Elfriede sabia que Jake era um prodÃgio intelectual, com um enorme talento para discernir a essência de um problema a partir de um monte de informações conflitantes.
- Esta é uma situação que vai muito além da Alemanha. Boa parte do problema começou na SÃria e na insurreição que houve por lá. Inclui a Turquia, porque ela está na linha de frente da crise dos refugiados. Então há a Rússia, que apoia a SÃria. Os Estados Unidos entram na equação também, e o problema imediato afeta a Europa inteira. A União Europeia precisa estabelecer uma fronteira externa que funcione, se quiser se manter sem fronteiras por dentro. Caso contrário, vão reaparecer as fronteiras nacionais, e a UE irá se esfacelar. Precisamos terminar essa guerra da SÃria, que é a fonte primária do êxodo de refugiados. A Europa está pagando para a Turquia aumentar o rigor nas suas fronteiras e interromper o fluxo de refugiados, mas os turcos estão fazendo um jogo de extorsão. Também precisamos que paÃses europeus como a Polônia e a Hungria, que recebem injeções maciças de capital da UE, larguem essa posição ingrata de xenofobia nacionalista, mas isso não irá acontecer em breve.
Jake prosseguiu com sua dissertação.
- Na Rússia, precisamos que Vladimir Putin coopere, mas a estratégia dele é solapar uma Europa unida. Um fluxo de refugiados âarmadosâ conseguiria fazer exatamente isso.
- E quanto aos Estados Unidos? - perguntou Elfriede. - Certamente devem fazer parte da solução.
- Os Estados Unidos estão ocupados em tentar manter no poder um governo disfuncional no Iraque, e em combater o EI pelo ar. Não querem se meter diretamente na crise sÃria, e com bons motivos. Já desistiram de derrubar Assad. Se ele cair, é quase certo que as seitas muçulmanas virulentas irão tomar o seu lugar. A SÃria irá implodir.
A próxima escala era Berlim. A dimensão do desafio que a Alemanha enfrentava era evidente no aeroporto desativado de Tempelhof, em Berlim. Os amplos hangares de 15 metros de altura estavam sendo convertidos em abrigos para milhares de refugiados, que dormiam onde anteriormente se guardavam aviões. Havia cerca de 2.600 refugiados ali, e eles esperavam receber mais sete mil. A expectativa era acomodar mais umas 60 mil pessoas na capital.
Tess conversou com um casal de jovens refugiados vindos de Alepo. Ouviu reclamações sobre a comida, ter de aprender alemão, e como as semanas se esticavam para meses, enquanto eles ficavam naquela central de emergência. No inÃcio, não queriam sair de Alepo, mas isso dependeria de a guerra terminar. Passaram um, dois, três anos nessa esperança, até que perceberam que tinham quatro guerras a enfrentar: a SÃria de Assad contra os rebeldes; o EI contra o governo e os rebeldes sÃrios; os sauditas contra o Irã; e os curdos contra o EI. Então perderam as esperanças. Os refugiados do Oriente Médio não saÃram de lá como opção. Eles saÃram por falta de qualquer outra opção.