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A Estrutura Da Oração
A Estrutura Da Oração
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A Estrutura Da Oração


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Sentado ? mesa, afasto o prato dos legumes e considero que preparei um almo?o excessivo. Contemplo com uma aten??o injusta a limpeza dos mоveis, do piso, da prateleira sem pо, da imita??o de porcelana imperial com um brilho fora do normal e que mostra os querubins nus com os seus rostos pаlidos e espectrais. Tomаs, disciplinado, estа ofegante lа em baixo, abanando o rabo em gesto de sauda??o. O menino bebe o sumo de laranja que vai derramando a gotas pelos cantos dos seus lаbios e eu come?o a rir com a sua falta de jeito. Como apenas a salada e bebo meio copo do sumo de frutas e afasto o peixe, porque n?o me apetece, tal como afastei todo o resto da comida. O meu olho direito volta a verter remelas, que retiro com pudor e algum aborrecimento, uma vez que o mi?do dirigiu-me uma cara de espanto enquanto comentava algumas das passagens da B?blia. Tomаs segue-me atе ? cozinha, envergando um passo marcial, implorando com a sua respira??o ofegante alguma satisfa??o que diminua o vazio do seu est?mago e que o impe?a de salivar.

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Subo as escadas e dirijo-me aos meus aposentos. Tento descansar, mas sem sucesso. Regresso ao sonho que pesa sobre mim como uma pedra e que sо consigo tentar apagar quando acordo. A tal escurid?o. E de repente, regressa a mesma imagem, que se repete uma e outra vez, como se o meu olhar estivesse dentro de um caleidoscоpio, cujas refra??es levam-me, a cada instante, ?quela imagem sem distor??o. Pe?o a Deus que me livre deste tormento e que o meu esp?rito se acalme com estes sobressaltos. Umas orelhas ciclop?deas, rachadas pela l?mina de uma faca. Е essa a imagem e sei bem de onde vem. Das lembran?as que tenho do quadro que estа no meu quarto, de certeza. Do estudo vespertino, permanente e inesgotаvel que costumo fazer ao contemplar o quadro de toda a vez que permito que as suas portas se abram. Е uma imita??o falsa e quase destru?da, do cеlebre tr?ptico do grande pintor, que comprei com as poupan?as de uma vida inteira. Hа que reconhecer que n?o passa de um objeto f?til, comparado com o original, principalmente na arte, apesar de ser uma cоpia fiel, de iguais propor??es. Contemplo o mundo. Consinto que se abram as portas da obra matizada sobre a tаbua de carvalho e fixo-me num mundo paralelo: o do Para?so, do Jardim e do Inferno. Todas as tardes fico maravilhado. A arte do pintor е t?o imaculada que atе me arrepia, mesmo com uma interpreta??o mal feita. Costumo caminhar sobre o fresco do entardecer, explorando as pe?as da sua constitui??o, tentando decifrar a alquimia que gerou a destrui??o do Para?so do tempo presente, a arte do Demiurgo que construiu o Inferno, que finjo conhecer, pois sо se tem capacidade de rejeitar aquilo que se conhece, o caminho da perdi??o que conduz a este calvаrio.

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Desperto do sonho com o corpo dolorido, com uma sensa??o de calor que me incita ao pecado. Fico com a impress?o de que jа n?o sou a mesma pessoa, de que quero escapar para algum lugar onde n?o tenha de me preocupar com o apelido que me denuncia perante os homens. Escapar ao olhar de Deus, para que os seus olhos n?o recaiam mais sobre mim, e assim, poder satisfazer as minhas ilus?es. O pensamento de sacrilеgio que me ocorre todos os dias. Rezo para que o demоnio se afaste de mim e sinto que Deus reactiva a minha fе, que afasta Luzbel do meu corpo, que come?a a arrefecer. E rezo, n?o posso fazer outra coisa a n?o ser suplicar aos cеus para que me ajudem a escapar ?s ciladas do meu prоprio corpo, para que acalmem a perf?dia que planejo no meu delito, para fugir das inclina??es que me atentam os sentidos. Recorro a um pouco de introvers?o que, por um momento, me salva. Rezo e preparo-me para a missa.

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O menino passa em frente ? minha porta e detеm-se por um momento, inclinando-se e ajeitando algo em suas pantufas. O seu pijama branco faz a sua pele transparecer e е poss?vel ver a sua figura de mi?do voluptuoso. Porеm, no seu rosto hа inoc?ncia, castidade. A luz artificial faz as suas bochechas ganharem um tom rosa pаlido que brilha sobre o tom claro-escuro da entrada. Desconhece por completo os seus poderes de sedu??o, da perigosa atra??o que produz a cada passo que dа. Endireita-se, lan?a um olhar para o interior do meu quarto e, na sua timidez eterna, tenta despedir-se de mim com uma vеnia que parece distante e irritante. Com um gesto, convido-o a aproximar-se. Dou-lhe a minha b?n??o e fa?o um sinal da Cruz imaginаrio sobre a sua testa. Depois, descendo a minha m?o, quase que em forma de punho, ? altura da sua boca, vejo como os seus lаbios acariciam os meus dedos, contemplando o seu rosto perto de mim e sinto um tremor invadir-me, pois o aspeto de suas fei??es assemelha-se ao rosto de um arcanjo. Passo para os seus ombros e nesta ocasi?o, continuo com o sinal da Cruz com quatro beijos que lhe dou na testa. N?o tenho outra op??o sen?o deixа-lo ir e continuar a minha ora??o.

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O jovem Manuel depositou a sua confian?a nas palavras do Padre Misael. E este convida-o a rezar o ter?o todas as noites com ele. Instruiu-o na arte m?stica da ora??o, na interioriza??o espiritual que, segundo o sacerdote, purificarа a sua alma, ficando livre de todo o pecado para poder ser um filho de Deus purificado. E Manuel manifesta a sua entrega incondicional. O Pastor imp?s-lhe esse dogma. Mostrou-lhe que a fе е o que realmente importa se queremos ser salvos pelo Senhor, e que devemos confiar nas suas inten??es, mesmo nas mais misteriosas. E o menino acredita nele. ?s vezes, ao ajoelhar-se diante da cama, o Padre p?e-se de costas e aperta as m?os do menino. “Е uma ora??o refor?ada”, sussurra-lhe ao ouvido. “Assim Deus poderа ouvir-nos melhor, a ti como filho e a mim como Padre”, murmura-lhe todas as vezes, de forma quase inaud?vel, manifestando o segredo que n?o quer que a pequena imagem esculpida do Homem na cruz oi?a, a qual estа pendurada sobre a cabeceira da cama. Е nas noites mais frias que Manuel mais desfruta da sua companhia naquela ora??o dupla, mas que nos dias de calor parece-lhe insuportаvel, pois n?o consegue aguentar ficar com o corpo firme e pegajoso, colado ?s nаdegas, com a respira??o ansiosa e quente que o Padre expira nas ora??es e nas palavras de despedida, quando lhe dа o beijo empapado na nuca. Mas agora, ajoelhado, repousando os cotovelos sobre o colch?o, o menino estа a rezar perante a imagem do Profeta e o seu pai ainda n?o chegou.

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Esta noite n?o me levantarei. Deus refor?ou a minha fе. Deus е o meu pastor, o meu guia, a minha luz e o meu caminho. Escuta a minha ora??o e permite que eu tenha for?a para que n?o caia na escurid?o do pecado, oh Deus amado, oh Pai amado.

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“Pelo amor de Deus, que sonho t?o horr?vel. Salva-me, Senhor. Vigia-me e protege-me, Pai. Cuida de mim, Senhor. Que sonho t?o horr?vel. Ajuda-me, Senhor, imploro-te. N?o voltarei a cair nos prazeres do pecado. Prometo. Porque n?o suporto esta escurid?o. Os meus olhos n?o suportam tanta escurid?o”. Caminho, testando o meu leito, menos quente agora sem o meu corpo lа. Apalpo o vestuаrio, duro como a escurid?o que me sufoca. “N?o encontro a sa?da que me leve atе ? luz, Senhor, guia-me atе ? sa?da. N?o permitas que os meus pеs voltem a trope?ar”. Apalpo uma parede, fria como as minhas m?os, congeladas ao fundirem-se na frieza. “Senhor, encaminha-me”. Continuo a gritar em v?o. Esta casa е t?o triste, solitаria e t?o grande que o Padre Misael n?o me consegue ouvir. “No entanto, Senhor, Pai amado, que ouves as lamenta??es de todos os vossos filhos, guia as minhas pernas, acolhe-as na tua luz, tira-me desta escurid?o e prometo ser-te fiel atе ao ?ltimo dos meus dias. Prometo agradecer-te pela minha fе todas as manh?s. E cumprir as penit?ncias do teu mandato divino. Senhor, Pai amado, eu confio em ti. A tua palavra serа como uma lanterna para o meu pе e uma luz para o meu caminho. Eu sei que sim, Senhor, confio plenamente em ti. Mostra-me a sa?da. Guia-me atе ? Tua luz”.

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A porta do quarto abre-se e o menino, descal?o, chama pelo Padre. Teve que atravessar o largo Purgatоrio do corredor que separa os quartos como se fosse a interminаvel separa??o entre o Inferno e o Para?so.

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E chega ao pе de mim com as bochechas a tremer e os dentes a ranger, gelado, pаlido.

“Tive um sonho horr?vel, Padre. Sonhei que havia um fantoche entre os dentes de uma besta gigante. Era um monstro horr?vel. Tinha uns olhos enormes e vermelhos e olhava para mim enquanto me segurava na sua boca, pois o fantoche era eu. E a forma como me olhava? Bufava como um touro e tinha uma baba muito l?quida que quando ca?a era pegajosa, nojenta. Estava tudo escuro. Mas os seus olhos, oh Deus, como eram horr?veis os seus olhos”.

“Entra, filho amado”, eu disse. E recebo-o em minha cama e por dentro estou a sorrir do seu medo infantil do escuro.

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Entra, jovem. Entra, triunfante ? tua Jerusalеm, que te aclama.

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Uma vez mais o Padre Misael n?o consegue dormir, enquanto isso, vai atе ? janela, com o menino a dormir no seu leito. Tudo o que ele deseja е um copo de vinho, mas n?o do cаlice sagrado que se transforma no sangue do Senhor, e sim daquele que lhe acalma os nervos e permite-lhe reprimir o desejo de ser outro. Lа em baixo, toda a cidade dorme. E ? dist?ncia, observa como nenhuma janela tem luz e percebe que a sua insоnia е infinita, incomparаvel. Uma solid?o sem fim e sem intervalos. Reconhece que n?o hа outra igual. O mundo n?o iria compreender. Nem compreenderа. Nem sequer Deus, na sua infinita sabedoria e com o seu olhar omnipresente, compreenderia. Nem compreenderа.

SEGUNDA-FEIRA

Ora??o e blasfеmia

…sanctificetur nomen tuum.

O peito incha e um terramoto em miniatura, proveniente dos br?nquios, incha a cavidade torаcica, germina nos anеis da traqueia, ronronando uma resposta inconsciente e coletiva, invocada por milh?es de bacilos аvidos de subst?ncias, convulsionando, por onde passa, a faringe e a laringe. A onda microscоpica flui e espalha a sua aurеola com a trepida??o de toda a epiglote. O ciclone min?sculo ecoa na membrana pituitаria e distribui o aluvi?o entre o nariz e o paladar, facilitando o congestionamento do s?bito estrondo do roncar.

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Passei a noite em branco, implorando ao cеu, misericоrdia, ouvindo o sussurro das minhas jaculatоrias misturarem-se com o barulho da respira??o do menino. O som do seu peito inflamado foi outro incentivo para a minha vig?lia. Ligarei para o mеdico assim que amanhecer. De toda a vez que senti vontade de contemplar a sua anatomia repousando sobre o meu leito, sujeitei-me ? acusa??o feita pelo meu desejo de continuar a ser um filho de Deus. De seguir os passos do Profeta e n?o ceder logo ?s armadilhas do mal. “Quero servir-te Senhor e derrotar a tenta??o do demоnio e dizer-lhe que nem sо de carne vive o homem. Ele atenta-me, para que me afaste de Ti, oh Pai amado, mas eu sou servo exclusivo das Tuas ordens”.

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Tomаs v? sombras onde elas n?o existem. Inventa-as. Por vezes, durante as manh?s ensolaradas do ver?o, p?e-se a andar atrаs das lagartixas, animais que se infiltram nas paredes de pedra do jardim, por entre as fendas de cimento do pаtio das traseiras, entre as gretas da beira das janelas, aquela bicharada que aparece para apanhar um pouco de sol. Tomаs repreende-as com uma voz anci?, com grunhidos grossos, carregados de lentid?o e escassos em impulsos. Embora, noutras alturas, recorra ao ladro com uma energia inusual, fazendo predominar a sua autoridade de c?o mais velho, a sua atitude vigilante de Cеrbero a tempo parcial, ao acesso dos seus antecessores mais frаgeis, certificando-se de que ninguеm viola o seu territоrio. Agora estа a brincar com uma bravura repentina que retirou sabe-se lа de onde e que adverte o bicho, que deve ter procurado, provavelmente, ref?gio no galho de alguma velha amendoeira onde o c?o dа saltos de emboscada enquanto ladra. Mas no geral, е a imagina??o cansada que esbo?a, na sua fantasia daltоnica, agravada pelo seu olfato jа gasto, os demоnios que sempre o atormentam. Digo para mim prоprio, enquanto o observo, que afinal, n?o somos assim t?o diferentes. Simples animais instintivos cedendo aos caprichos da nossa natureza. Isto se n?o fosse a nossa alma. “Obrigado, meu Deus, por nos teres dado uma alma”.

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Celebrei a eucaristia sem a presen?a do mi?do e, apesar da m?o caridosa que segurou o incenso n?o se ter ausentado, o resultado da experi?ncia n?o foi semelhante ? que sinto na presen?a dele. N?o o ver durante um par de horas foi um tormento ainda maior do que t?-lo deitado a cent?metros da minha pele.

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O veredicto do doutor foi definitivo. “Е uma forte gripe que estа a afetar as defesas do rapaz”, diz-me numa voz grossa, esbo?ando um sorriso rigoroso, “mas que com alguns dias de repouso e uma forte dose de analgеsicos, estarа novamente com sa?de”. Caminhаmos os dois atе ? porta, cujas dobradi?as emitem um ru?do carregado de ferrugem que nos faz estremecer devido ? sua agress?o auditiva. Apоs isso, o doutor volta-se com solenidade, baixa o olhar, submisso, e pede a b?n??o. Esbo?o uma cruz no ar, bem ao n?vel do seu rosto e logo se despede com uma vеnia. O rapaz volta a adormecer, inspirando e expirando com dificuldade. Apalpo a sua testa para explorar a doen?a, mas sо consigo sentir o meu corpo a tremer e uma transpira??o excessiva a fluir das minhas m?os.

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Fiz servi?o de escritоrio e encurtei as reuni?es com os paroquianos. E jа livre das minhas responsabilidades, caminhei pelo passeio do cais, na margem do rio, que liga esta pequena cidade ? cidade vizinha, atingida pela brisa que se agita com um profundo assobio e como sempre, que me despenteia. O fim do ver?o arrasta belos murm?rios. As andorinhas propiciam o conhecido ?xodo anual atе ao oeste numa peregrina??o com demasiada lamenta??o, uma vez que as aves, na sua anarquia escatolоgica, durante esta еpoca recorrem justamente ? zona do parque central, ornamentando automоveis, bancadas, pra?as e pe?es com uma festa de excrementos sem igual.

Precisamente agora em que caminho perto do parque central, percebe-se a trinada coral destes pаssaros min?sculos agarrados aos cabos elеtricos, num canto coletivo retardado por breves intervalos devido ao ru?do dos transportes que circulam sem cessar pela avenida. Continuo a minha marcha pela rua mais discreta que encontro nesta vila aspirante a cidade, um beco sem passagem para ve?culos que se converteu no meu itinerаrio obrigatоrio de toda a vez que venho ?s compras. Aqui tudo е serenidade, sem estrondos de motores e buzinas irritantes. E de repente, ressoa o barulho do lugar do bilhar, inaugurado nestes ?ltimos dias. Ouvem-se insultos revestidos de uma tonalidade cada vez mais obscena que fluem da boca de um jovem que n?o hesita perante a robustez do seu inimigo, o qual se encontra orgulhoso das suas tatuagens obscenas que incitam a classificа-lo como um preso de alguma pris?o remota. Opto por retirar-me rapidamente e, girando sobre os meus calcanhares, de costas voltadas para as hostilidades, consigo ouvir os golpes secos que agitam os corpos. Vou para a avenida principal. Caminho, tentando esquecer o mi?do. Mas nem sequer o barulho dos carros, nem os gritos dos condutores furiosos com a ponta do pе no pedal, ou a chuva de cr?ticas que recai sobre mim como se fosse loi?a, ou atе mesmo o recente conflito na rua, s?o capazes de me fazer deixar de pensar nele e deter o meu supl?cio. Tento distrair-me ao pensar em uma conclus?o pac?fica para aquela rivalidade no beco. Chego ao meu destino, mas sem ter tirado dos ombros o peso que carrego.

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O mercado е um inc?ndio de sons. Os gritos que tomam conta do lugar, carregado de vendedores ansiosos por vender as suas frutas, legumes, gr?os e outros alimentos no geral, d?o um toque de euforia, prоprio dos lugares cheios de pessoas. Como sempre, aproximo-me da zona do peixe e pe?o o mesmo de todas as segundas-feiras.

“Aqui tem, Padre”, diz-me Leandro, o vendedor que me conhece hа anos e embrulha, sem contemplar, os peixes, ainda epilеticos, em folhas de jornais antigos. Ao sair do mercado oi?o as sirenes da pol?cia a queixarem-se num alarido, encorajando e perseguindo os curiosos que se juntam na cena do crime para recriarem a sua curiosidade e julgarem com os olhos. Ao passar perto da rua da batalha, posso ver como o rufia corpulento е algemado e colocado no carro-patrulha, mas n?o sem oferecer resist?ncia. N?o hа sinais do jovem destemido. Afasto-me, imaginando uma vez mais uma conclus?o rebuscada ? histоria da briga no bar. Recai sobre mim a imagem do menino, a lembran?a da sua voz que palpita nos meus t?mpanos como se fosse um coro de anjos. Entendo que е uma blasfеmia maior do que os palavr?es do homem musculado e cheio de tatuagens. Fa?o algumas ora??es enquanto vou para casa.

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A senhora Salomе desfila, balan?ando a vassoura ? minha frente sem qualquer preocupa??o, sob a prote??o de Tomаs, como sempre. Adaptou-se ? minha presen?a no sofа, ? minha prostra??o habitual que me une a uma mistura de sensa??es que ela jamais suspeitaria. Por alguns momentos entendo que sou eu quem estа acostumado ? sombra da sua anatomia a deslocar-se pela sala. Levanto-me entediado e dirijo-me aos meus aposentos.

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A m?sica penetra em minha sensibilidade e imprime uma pegada com a sua alquimia melodiosa. Fecho os olhos e sou transportado para outro mundo, mais prazeroso, um lugar marcado por alegrias interminаveis, um para?so feito de todas as flores: t?lipas, dаlias, ageratos, cris?ntemos, orqu?deas, l?rios – onde perder-se torna-se uma b?n??o. A ?nica forma de evitar os pensamentos inalcan?аveis e constantes.

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Uma ?nsia agita o corpo do jovem. A for?a, que comprime e que o diafragma libera violentamente, emana dos pulm?es e irrompe com dureza, deslizando grosseiramente pela l?ngua, atravessando as cordas vocais que transformam o impulso num som rouco e turvo. A tosse materializa-se na saliva que atravessa a garganta e termina numa viagem desde a janela atе ao jardim. O menino tosse prolongadamente, com pausas que mal lhe d?o descanso ao ardor das am?gdalas. Ao mesmo tempo, o impetuoso latido de Tomаs inunda toda a casa, apesar de estar no pаtio, e е poss?vel notar que a sua vigia n?o foi in?til, jа que deve ter detetado provavelmente algum bicho escorregadio, ou talvez se trate apenas de uma inven??o dos seus sentidos envelhecidos.

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O toque recorrente move o sil?ncio enquanto oi?o os sapatos da senhora Salomе atrаs de mim, a deslizar apressados sobre os azulejos, detendo-se no seu destino para dar lugar ao som plаstico do levantar do auricular. O tilintar dos utens?lios do servi?o de mesa eleva-se aos ouvidos de Tomаs, оrg?os cansados, mas mais despertos do que o seu olfato quase perdido. Talvez esteja a exagerar e ele tenha alcan?ado a mesa devido ao cheiro do peixe. O menino descansa. Mastigo com cuidado a textura do alimento. A suavidade salina que me satisfaz o paladar e oi?o a aniquila??o de alguma espinha entre os dentes. A senhora Salomе retira os pratos. E comunica-me, muito formalmente, que hoje precisa de sair mais cedo devido a um incidente domеstico, pelo qual se deverа ausentar por alguns dias. Assinto com a cabe?a num gesto confirmatоrio.