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A Estrutura Da Oração
A Estrutura Da Oração
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A Estrutura Da Oração


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Abro o tr?ptico apоs examinar o mundo em colapso. A minha vis?o recai sobre o lado direito, impregnado de ilustra??es complexas. Serа o inferno um lugar assim t?o barulhento? Questiono-me. Serа um grito infinito que faz explodir o cеrebro e as entranhas para depois nos incentivar a recolher os nossos restos? Ou serа que todos esses instrumentos musicais tingidos na pintura carecem de sons e o sil?ncio infernal е o destino dos hereges? O inferno n?o е o doce uivo do sil?ncio, disso tenho a certeza, е o fluxo de crepita??es que se fundem para dominar a alma. Por isso este condenado estа embutido nas cordas da arpa, e este outro infeliz estа sacrificado no gigante ala?de. Ent?o penso na minha condena??o e escrutino a este triste sodomita perfurado por uma flauta como o iniciador de uma grande estirpe de sofredores e е como se conseguisse escutar o seu sofrimento, como se de alguma forma enigmаtica a sua dor fict?cia se transfigurasse em cumplicidade dentro do meu intestino e me fizesse lembrar do horrendo pecado. Contemplo o homem que е abra?ado por um porco com vеu de freira, e е como se me tivessem introduzido no quadro, pois sinto o fedor dos sussurros obscenos no constante ruminar perto de mim, dentro de mim. Fecho urgentemente as portas deste terr?vel mundo espiritual e aparece a imagem do mundo terreno, uma paisagem que me parece ainda mais horr?vel. “О Mundo, estаs cheio de pecado. Protege-nos, Deus. Salva-me, Deus”. Preparo-me para a missa.

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Ave-maria pur?ssima, concebida sem pecado. “Eu pequei, Padre”.“Conta-me os teus pecados, filha”. “Tive pensamentos de lux?ria. Vi-o ontem ? noite, quase nu, e desejei o seu corpo, desejei-o com intensidade e ardor. Isso е muito mau, Padre?”

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O sacerdote escuta e reprime um suspiro de cumplicidade. Е a mesma histоria de cada crente, parcialmente desfigurada por uma leve matiz. Е o desejo. O desejo pecaminoso e repugnante. O Padre Misael, ao fim de cada ritual de natureza anаloga, acrescenta com a fоrmula do rigor e manifesta-a, como estа a fazer agora, com a mais normal das entoa??es, depois de ter escutado toda a parafernаlia ?ntima que implica uma confiss?o do esp?rito. “Que Deus, Pai misericordioso, que reconciliou consigo o mundo pela morte e ressurrei??o do seu Filho, e derramou o Esp?rito Santo pela remiss?o dos pecados, te conceda, pelo mistеrio da Igreja, o perd?o e a paz. Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, do Filho e do Esp?rito Santo”. No confessionаrio ouve-se um “Amеm” carregado de al?vio.

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Ponho-me atrаs da cabeceira e agito um frasco de colоnia de nardos com a qual humede?o as minhas m?os. Unjo na superf?cie do seu rosto e creio notar um pestanejar que е imediatamente aplacado pela for?a febril da febre. O menino arde. Eu tambеm, creio, mas por outras raz?es. “Dorme filho, que eu cuido de ti”. Quase a pegar no sono, levanto-me e noto que os medicamentos atenuaram a infe??o. Esfrego as m?os uma vez mais e acaricio os seus pеs com o bаlsamo. Dirijo-me aos meus aposentos, mais aliviado.

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“Louvada seja a аgua benta dos nardos que untaram o teu corpo. Descansa, que amanh? te levantarаs e andarаs”.

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Deliro, jа que vi de perto o rosto da besta, e isto sо pode acontecer nos meus sonhos. Е a febre. A sua baba inunda o meu corpo. Oi?o a sua expira??o e n?o tenho for?as para gritar, t?o pouco coragem para cuspir no seu rosto, nem sequer digo com saliva, mas com um olhar de nojo e horror. Choro, como е normal nos momentos de horror, e imploro ao cеu, como е normal num crente. “Manda a besta para o inferno, Senhor. Protege-me. Cuida de mim, Senhor. S? o meu amparo. Tu, Senhor, еs o meu pastor. Contigo nada me faltarа. Nada nem ninguеm me poderа atingir”.

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O jovem adormece finalmente, desta vez sem pesadelos, apоs o ataque de febre. O Padre, no seu quarto, disp?e-se a mudar o seu uniforme por uma roupa que lhe d? comodidade para descansar. Despe-se e contempla o seu corpo em frente ao espelho. Os p?los convergem na p?bis como um remoinho proveniente das coxas e do umbigo e envolvem a pеlvis chegando ao epicentro da sua zona genital, que se ergue, pouco a pouco, numa poderosa ere??o. “Livra-me do pecado, Senhor”, implora, sem sucesso. O seu desejo е maior que a sua capacidade de abstin?ncia. Mas de repente, sente-se invadido por um impulso, por uma rajada anormal que faz alargar o seu peito num sinal de satisfa??o e que deprime o fluxo de sangue que a sua natureza impulsionou atе o seu pеnis. Agradece a Deus, veste o pijama e deixa-se cair de joelhos em frente ? cama. “Obrigado, Pai”, apressa-se a expressar, com lаgrimas de conforma??o varrendo as suas bochechas. Hoje os seus olhos repousar?o com serenidade. Os seus ouvidos est?o tensos atе ao sil?ncio profundo da noite pac?fica. Parece que Deus o escutou. Pelo menos е o que o Padre Misael insiste em acreditar.

TER?A E QUARTA-FEIRA

Perfume e fedor

Adveniat regnum tuum.

Circula no ar, evaporando-se gradualmente, fugindo, divertindo-se e depois espreitando com timidez, voltando a manipular o meu olfato com o seu poder e com a impertin?ncia da sua apari??o. Recebo a fragr?ncia e sinto como se os m?sculos do meu rosto se esticassem num sorriso de prazer. Satisfa?o a minha necessidade de sentir o cheiro, infiltrado nas minhas narinas, do ar bals?mico carregado, acalmo a pressa odor?fica inalando mais fundo e perco-me no suor das flores. Ao abrir os olhos, a imagem do rosto do menino junto de mim, devolve-me ? realidade dos meus olfatos rotineiros, pois ao cumprimentа-lo, recebo o ar que mudou o aroma das suas bochechas para o cheiro horr?vel do meu hаlito matinal.

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Decidi que o menino deveria continuar de repouso, portanto, celebrei a missa sem a sua ajuda. Neste momento, a sua aus?ncia parece-me mais tolerаvel. Justifiquei o movimento pendular do incensаrio, cujo fumo marcou a minha pele, com uma ess?ncia de resina. Agora vejo-o recostado contra o sofа, assoando o nariz num len?o caqui enquanto uma dose variada de desenhos em movimento transitam pelo ecr?. Vou para a rua, rumo ao mercado.

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Malecоn estа completamente deserta. A frescura do rio brinda-me com um cheiro de аgua doce que se mistura com o simples aroma das palmeiras que adornam os seus contornos. O tr?nsito estа fraco. O mesmo beco de sempre me acolhe com o cheiro a cerveja, a urina implantada pelos cantos despreocupados, com postes manchados de pestil?ncia. Acelero o passo enquanto observo o nome de um estabelecimento novo, escrito em letras mai?sculas e em itаlico. “Um lugar de perdi??o, Senhor, e ainda por cima no meu beco favorito”.

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O mercado е um turbilh?o de odores. Os legumes e as ervas aromаticas, os gr?os e o marisco, os alimentos processados e as frutas, todos eles espalham uma extensa gama de sensa??es que invadem o olfato. Conduzo o meu corpo atе ? banca das especiarias. Fico impregnado com o cheiro da canela, dos cominhos, do cravo-da-?ndia, do piment?o-doce. Pago as especiarias com algumas moedas que Isaac, o vendedor, solteiro e com rosto carnudo, recebe em gesto de simpatia.

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Corto o robalo em fatias grossas que primeiro passo por аgua e depois, com a carne jа limpa, passo pelo sal e pelo lim?o. Refogo e coloco a comida num prato de porcelana. O seu aroma е forte e apetec?vel, tanto que Tomаs abandonou o seu posto diаrio de batalha para me controlar com a sua l?ngua esfomeada ao pе da cozinha, facto que talvez contradiga o meu ceticismo sobre a capacidade do seu nariz. Moo as bolinhas de pimenta, os paus de canela, o cravo-da-?ndia e os cominhos. Adiciono vinagre. Um l?quido lacrimal percorre-me os olhos e atiro as cebolas picadas para dentro da frigideira com o seu doce aroma. Acrescento o peixe com um pouco de xerez. Tapo e deixo a cozer em lume brando.

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Voltei uma vez mais a implorar pelo perd?o divino. “Estou arrependido de ter pecado por pensamentos e palavras, atos e omiss?es. Senhor, acolhe este pobre pecador para que volte para o Teu caminho e possa ser salvo por Ti”.

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Ali est?o eles, a dan?ar com alegria na podrid?o. Encantados com a sensualidade. A lux?ria satisfaz-se na armadilha do regozijo carnal e na concupisc?ncia. Os prazeres desonestos sublimam-se em peixes horrendos, em conchas abismais e outras merdas. Cabras, camelos, cavalos e aves ansiosas pelo gozo sustentado pela devassid?o. O espa?o fede a pecado, a lux?ria. Corrompem o ambiente com uma praga emanada do lado mais negro do nosso ser. Deixo de observar o quadro e certifico-me dos poucos minutos que disponho para o descanso antes que os sinos comecem a tocar.

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Estou prestes a celebrar a missa com um enorme cansa?o muscular. Bebo dois copos de аgua que abafam o ru?do do meu f?gado, ou pelo menos е isso que imagino, ou desejo. Coloco a batina. Sinto-me mais puro.

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O menino faz-me uma pergunta que me deixa pasmado. Obriga-me a retroceder atе que caio vencido no sofа. Incentivo-o a sentar-se do meu lado. Concorda, mas n?o sem antecipar um gesto que me adverte da disposi??o de n?o transgredir o seu propоsito. Acaricio uma mescla de cabelo que escorrega da sua cabe?a e coloco-a atrаs da orelha, lugar onde pertence. Sinto o seu olhar carregado de expectativa. Tento n?o dececionа-lo e digo-lhe que Deus е bom e misericordioso, que n?o o podemos conhecer fisicamente ou imaginа-lo com os perfis anatоmicos aos quais estamos habituados, mas esta aula de catequese n?o satisfaz a sua curiosidade. Mostro-me forte. Digo-lhe a verdade, que е preciso amar a Deus mesmo sem conhec?-lo. Diz-me, com uma cara de derrota e resigna??o, que Deus е complicado. Sо me sinto vivo ao experimentar o doce aroma a alm?scar que fica impregnado no meu nariz enquanto ele afasta as suas nаdegas do mоvel. Chamo-o. Volta-se com um olhar luminoso, com aquele olhar que me incita a agarrar-lhe pelas bochechas e a satisfazer os meus impulsos. Mas pe?o ao Senhor que me ajude, porque a ele nada е imposs?vel, e ent?o, com as for?as renovadas, encaminho o menino para o meu quarto. Digo-lhe que е um segredo. Revelo-lhe que conhe?o a Deus. E mostro-lhe.

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Deus n?o е pequeno, embora o pare?a a olho nu. Estа distante para poder ter uma maior perspetiva do mundo, е sо isso. O seu olhar, como sabemos, е omnipresente. Sentado no seu trono, a sua cabe?a estа coroada por uma coroa e nas suas pernas, descansa o livro sagrado. As suas costas est?o protegidas por uma longa capa imperial. Consigo v?-la agora, enquanto o Padre Misael me mostra esta pintura peculiar. A escurid?o do quadro causa-me medo. Contudo, resisto. No horizonte, por trаs da nеvoa que cobre o cеu, fechado no vidro c?ncavo, estа Deus, e consigo v?-lo. Agora jа o conhe?o. E vejo o seu sorriso.

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Preparo-me para dormir com o cheiro perfumado que provеm da sua nuca. Rezamos juntos, corpo a corpo, e pedimos a Deus que nunca nos afaste do seu caminho, a fim de nos poder exultar nos seus preceitos. Hа algo no ar que me impede de respirar normalmente. Tenho a absurda premoni??o de que estou a ponto de cair num pesadelo do qual n?o poderei despertar. Lа fora, come?ou a chover, muito suavemente.

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A manh? estа fria. A chuva refrescou o ambiente. Dormi tranquilamente, em paz com o meu esp?rito e protegido pela infinita misericоrdia de Deus. Fico mais descansado por saber que os pesadelos terminaram o seu trabalho de tortura noturna e que deram espa?o para uma trеgua. O meu otimismo n?o me garante que os derrotei. Uma parte de mim, sabe que conseguirei sair desta batalha contra o demоnio, mas outra, a mais frаgil, indica-me a dimens?o do meu fracasso, pois a cada momento a minha mente sucumbe ? tenta??o e cada parte do meu corpo infringe essa lei que exige a minha alma.

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Decidi tomar um banho. Tive a sensa??o de impureza na minha pele, n?o sо pelo fedor das minhas axilas, mas tambеm pela montanha de obscenidades que carrego no pensamento. Devo estar purificado antes de subir ao altar. Refrescar-me um pouco n?o me farа mal, de modo que come?o a ensaboar a minha pele. Tambеm lavo a minha alma com ora??es.

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A temporada de inverno aproxima-se e jа е poss?vel sentir o seu cheiro. Qualquer mortal o pode fazer, mas sobretudo os seres que est?o habilitados da melhor forma para tais necessidades. Por isso, Tomаs, ao contrаrio do que o clеrigo pensa, sabe disso melhor do que ninguеm. Reconhece como alheio o aroma etеreo que destila o solo perto da amendoeira. Por isso demarca o seu territоrio com frequ?ncia. A esta??o do ver?o, jа a terminar, е vencida pela humidade elemental dos ciclos. O cheiro da terra emerge e inunda o portal com o seu еter. Os antigos diziam que o petricor era o sangue dos deuses, a ess?ncia que corria nas suas veias. Hoje n?o passa de um aroma aclamativo que, de vez em quando, e desde que a sua qualidade de fuga n?o se desvane?a, causa-nos um pequeno desconforto, sem nos apercebermos de que е e sempre foi, ao longo de vаrias еpocas, o verdadeiro suor desta terra, o seu cheiro aflorado. Tomаs o compreende. O seu nariz n?o se desgastou atе ao ponto de o mundo lhe ser indiferente. Ele percebe alguma coisa de odores. Compreendeu algo na sua longa vida de c?o. Por isso deixa de urinar na amendoeira e tende-se a uma postura m?stica rara, jа derrotado pelo clima, sobre as folhas h?midas que formam um colch?o natural. O seu olfato real?ou-lhe a sagrada condi??o das esta??es. Agora, finalmente, uma nuvem esquiva brinda-o com um pouco de sol que a sua pele agradece.

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Encontrei um velho amigo no mercado. Tivemos uma conversa agradаvel, mas breve.

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A senhora Salomе chegou enquanto estive ausente. Explica-me, em forma de justificativa, as suas pen?rias. Digo-lhe que evite as preocupa??es, que compreendo a situa??o e que tire a semana de folga. Insiste em preparar o almo?o de hoje como forma de compensa??o pela futura aus?ncia. N?o irei implorar. Fecho-me no meu quarto enquanto a senhora cozinha e tiro uma garrafa de vinho do meu lugar secreto. Come?o a beber com longos goles.

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A garrafa estа a metade e deixo-a sem qualquer precau??o sobre a mesa de cabeceira. O vinho ingerido provoca-me uma leve sensa??o de tontura que pretendo expulsar com uma chаvena de cafе. Imploro por um banho de аgua fria, mas a senhora Salomе diz-me que a comida estа pronta. Engulo a sopa com ressentimentos. O calor acalma o vazio do meu est?mago, o estranho desconforto causado pela bebida. Levanto-me da mesa olhando para o menino que come e dirijo-me aos meus aposentos com uma enorme vontade de dormir.