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A Estrutura Da Oração
A Estrutura Da Oração
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A Estrutura Da Oração


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Entreabro os olhos e a primeira imagem que vejo е a do mundo. A minha bebedeira n?o е adequada para perscrutar as del?cias imundas do seu jardim. Imagino o corpo nu do menino com verdadeira lux?ria e depois volto a adormecer. Quando acordo, apercebo-me de uma posi??o incomum do lado direito do quadro pintado. Suponho que alguеm tenha revisto a pintura. A senhora Salomе estа proibida de entrar nos meus aposentos e sempre foi respeitosa, portanto a minha ?nica suspeita recai sobre a curiosidade do mi?do. N?o me irrita, mas tambеm n?o me agrada a sua invas?o. E ent?o, sinto a pastosidade que manchou as minhas cuecas durante o sono.

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Hoje vieram menos pessoas ? igreja do que ontem. No entanto, os meus serm?es foram mais extensos.

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O ?ltimo livro da B?blia anuncia um inferno repleto de fogo e enxofre como condena??o para aqueles que traem as leis do Senhor. Um inferno de fetidez, de vapores fedorentos, seria um tormento insuportаvel, mesmo para qualquer alma alheia ?s debilidades do corpo. Defeco calmamente e com alguma dor. O meu esf?ncter expulsa um gаs em forma de um guincho agudo. Cheira mal, mas aspiro-o, imaginando um tormentoso inferno pestilento, saturado de efl?vios fedorentos e, aqui sentado, o cheiro sobreposto ? imagina??o incita-me ? nаusea. Abro um pouco da porta, permitindo que circule um pouco de ar fresco que sacuda os miasmas excrement?cios, o ar viciado que contaminou o meu organismo.

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Tomаs fareja-me a perna, provavelmente por ter sentido o cheiro a sab?o no meu corpo apоs o banho. Come?a a emitir grunhidos desagradаveis. Puxa-me pelo tecido do pijama e rasga-o, inundando-o com a sua baba. “C?o feio”. Agora vejo-o afastar-se, satisfeito com a sua brincadeira. Tiro o pijama e vejo-me nu em frente ao espelho. N?o resisto a fazer uma car?cia ? zona dos meus test?culos. Um fluxo elеtrico faz-me tremer. O meu pеnis incha num tom vermelho-escuro. Ao reagir, afasto-me do espelho com horror. Tiro outra roupa e tento esquecer os meus desejos.

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O Sinеdrio dos sentidos acolhe com agrado a proposta de trair a alma.

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Tiro-lhe a camisa com uma serenidade que nem parece a minha. Mas s?o as minhas m?os que despem o seu tronco. Deito-o com o rabo virado para a minha cara, que afasto imediatamente, corando instantaneamente. Acaricio as suas costas que provavelmente estar?o a queimar com o fresco do mentol. Os seus pulm?es jа o sentem, tenho a certeza, pois as minhas m?os esfriam ao ritmo das massagens. Contemplo pela ?ltima vez o seu rabo perfeito de jovem dominante. Volto-o com o seu rosto virado para mim. Meto o mentol sobre os seus peitorais e aproveito para apalpar os seus mamilos t?midos que emergem sem ousadia. O cheiro forte do eucalipto penetra-me.

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Esta madrugada, ambos dormem com o ruminar da chuva a a?oitar a rua. Nem o Padre Misael teve o sonho da faca, nem o jovem Manuel a vis?o da besta. Talvez tenham desaparecido de vez. Estamos no limiar de um novo dia. No centro da cidade, a chuva arrasta todos os pivetes da rua do bilhar. A chuva forte limpa a velha аrvore do pаtio. Durante as chuvas, alguns ingеnuos afirmam que е Deus a chorar por todos os pecados da humanidade. A imagem mais acertada n?o estaria simbolizada pelas lаgrimas divinas que caiem sobre o mundo, mas pelo chiado da urina que nos encharca, como o de Tomаs, que agora descasca a casca da velha amendoeira. De uma forma ou de outra, afinal е do corpo do Deus imaterial que provem o l?quido que nos lava.

QUINTA-FEIRA

Frio e calor

Fiat voluntas tua, sicut in caelo, et in terra.

Sou sacudido por uma descarga ardente cuja gеnesis е o occip?cio e parte em ?xodo destilando por toda a minha coluna dorsal. Os meus tend?es despertam e obrigam-me a esticar o comprimento do meu corpo na prazerosa dor que е consumida de forma orgаstica nas minhas cuecas. Sinto como o meu pеnis vai descendo lentamente, derrubado pelo prazer convulsivo da polui??o, enquanto na minha alma se forma um vazio que n?o consigo suportar. O frio desliza pela janela aberta e balan?a a cortina com um uivo l?nguido e consecutivo. Observo como o veludo estremece sobre a parede, embate no vidro da janela, contra a moldura feita de pinheiro. Sinto a brisa deslizar e colar-se ?s minhas axilas, agitando-me a pele numa rajada que arrepia o meu corpo todo. Suspiro. Separo-me do interior maculado pelo sеmen. Levanto-me e oro pela fraqueza do meu corpo.

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O calor do cafе encoraja-me a deixа-lo. Prefiro ingerir o sumo de p?ssego com pequenos golos. O menino conta-me uma histоria um pouco profana, mas n?o me atrevo a repreend?-lo. Apenas olho para ele e esbo?o um sorriso frio. Hoje tambеm n?o me fez companhia na missa e fez-me tanta falta, principalmente quando o bispo Pio deu a b?n??o. Observo-o e maravilho-me com as suas fei??es, com o seu olhar despreocupado, com o seu cabelo despenteado pela manh?. Levanto-me rapidamente da mesa, tentando desviar o olhar que continua voltado para ele, uma e outra vez.

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Tive tremores. Hoje n?o sairei de casa nem sequer para atender os paroquianos que est?o a preparar-se para a sexta-feira Santa. Deixei alguns compromissos menores ao cargo de outrem, seguindo a recomenda??o do doutor. O mi?do prepara-me uma infus?o que ingiro com os medicamentos. Ao voltar-se, pude notar o movimento das suas nаdegas num vaivеm provocador. Rendo-me ao sono.

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Vejo o rosto do rapaz ao acordar. Esteve a fazer-me companhia durante todo o tempo em que estive com febre. Diz-me que fez o almo?o e conforta-me o corpo com uma sopa quente que insiste em dar-me ? boca, colher atrаs de colher. Mas depois vem um momento de tens?o. Repreendo-o por ter examinado a pintura sem o meu consentimento e responde-me que sо queria saber o que continha o quadro. N?o е uma quest?o de proibir-lhe o conhecimento, mas considero que deveria ter consultado antes uma voz que lhe confirmasse se estava ou n?o capacitado para tal conhecimento. Responde-me que se sente apto e implora que o guie pelo quadro. Apоs uma luta de s?plicas e rejei??es, cedo ao pedido e permito-lhe abri-lo. Ele faz uma cara de surpresa. “Е lindo” diz, “mas horr?vel ao mesmo tempo”.“Е a nossa alma”, digo-lhe ou penso simplesmente. O choque residual da febre deixa-me tonto. Neste momento sо me dа vontade de afastar-me do menino, de gritar com ele para que saia do meu quarto e que desapare?a para sempre, que Deus me revelou que ele е um emissаrio do demоnio. Sou invadido pela vontade de o excomungar da minha vida. Sei que farei tudo ao contrаrio, porque me ergo para ele e pouso uma m?o sobre o seu ombro e a sustento num abra?o cheio de inten??es. “O que estаs a ver е um para?so, um inferno, e isto aqui”, digo-lhe com uma voz magn?nima indicando-lhe a parte central, “е o mundo”. “Por agora jа chega! Teremos tempo para o examinar parte por parte”. O meu corpo n?o resiste ao impulso e beijo-o na bochecha enquanto des?o a m?o atе ? fenda das suas costas. N?o reage em forma de rejei??o. Pede-me, inesperadamente, que lhe d? a b?n??o.

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Mandei o mi?do ao mercado para fazer compras. Sinto a sua aus?ncia e tento combater o desejo com uma ora??o, mas ao estar ajoelhado, as palavras ficam-me presas na garganta. Desta vez n?o consigo rezar. Levanto-me, tomo um duche de аgua morna, e preparo-me para o receber o mais arrumado poss?vel.

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O menino finalmente chega, mas infelizmente vem acompanhado pela menina Raquel, uma mulher prestativa ? disposi??o da Igreja, jovem, apesar dos seus quase quarenta anos, solteira, apesar da sua beleza. Atrаs dela entra uma comitiva de senhoras que se juntaram para me fazer uma visita e oferecer-me frutas, compradas precisamente, imagino, ? bela solteirona. Tomаs cumprimenta com latidos de indigna??o. Recebo-as com aparente agradecimento, dando-lhes, com a autoridade que me conferem, algumas advert?ncias, mas tambеm uma ou outra tarefa para a prepara??o da prociss?o de amanh? e despe?o-me delas de forma delicada alegando o pretexto do meu repouso. Fecho a porta atrаs delas, com o gume de ferro bolorento e dobradi?as enferrujadas, e vou ao encontro do rapaz por toda a casa.

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Convido-o uma vez mais a entrar no meu quarto. Mantemos uma conversa sobre certos aspetos teolоgicos que ele debate com leve consentimento. Instruo-o enquanto pouso a minha m?o aberta sobre a sua apetitosa coxa carnuda. Incentivo-o a fazer uma ora??o em conjunto. Coloco-me atrаs dele e juntos proferimos o nosso pedido habitual. Sinto o calor do seu corpo que abafa o frio do ambiente e, ao mesmo tempo, refresca o ardor das minhas entranhas.

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O corpo vence-me. Deito-me com o sabor das frutas ainda patente no meu paladar. Ensaio uma ora??o que se derrete na tentativa. A minha cabe?a estа em outro lugar, na figura do mi?do. Dirijo-me com passos cambaleantes atе ? sua porta. Entreabro-a e vejo o seu corpo adormecido no prazer da sesta numa postura fetal com um belo traseiro a apontar na minha dire??o, convidando-me a acariciа-lo, a dar-lhe uma dentadinha definitiva. O meu corpo gelado ferve de febre ou de algo mais. Numa explos?o de lucidez, volto para a minha cama.

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Acordei com a viscosa sensa??o do suor colado ? minha pele. Observo o brilho do sol da tarde que se reflete no espelho e inunda o quarto com o seu resplendor, invadindo cada esquina. Entendo a necessidade de me lavar, pois uma onda de calor invade o quarto e as minhas virilhas est?o pegajosas. A febre jа passou. Imploro por um pouco de аgua fresca.

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Enviei as indica??es aos fiеis por escrito para a prociss?o da sexta-feira santa. O menino foi a minha companhia enquanto escrevia a mensagem que depois encarregou-se de entregar, estimulado pela promessa de ensinar-lhe uma parte do quadro. N?o consegui conter o meu interesse dos seus movimentos, o meu olhar recaiu sobre ele a todo o momento. Fez-me atе desviar a caneta em algumas caracter?sticas.

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A caixa do disco possui como capa a imagem de um caminho cercado por folhas outonais que se perdem num horizonte sugestivo. A passagem amarelada atravessa um bosque de absoluta gentileza. Nenhum pаssaro estraga a tranquilidade. Nenhum animal se atreve a profanar a serenidade do pequeno universo de folhas e terra. Todos est?o escondidos para, de forma fogosa, inaugurarem um para?so infernal. Coloco o disco no aparelho, obrigando-o a girar rapidamente. Aquela geringon?a transforma-se num min?sculo turbilh?o infinito que gira a milhares de rota??es por minuto. A m?sica invade a sala, muito lenta, como se estivesse a lutar por acordar de um sono imposto por for?as restritas, inalando sossego, absorvendo sil?ncio, mantendo-se no espa?o que depois ocuparа com a sua tonalidade imperial. Mas serа o frio. O baixo marca o ritmo, prosseguindo de forma cont?nua, jorrando com um crescendo que matiza as t?midas interven??es dos violinos: s?o os passos do caminhante a quem pressiona alguma tribula??o, s?o os rangidos do gelo a ponto de quebrar-se. Agora, soam os raios queimados pelo violino solista, o tormento da orquestra ruge e agita o espa?o e vibra aos pеs do desgra?ado. A competi??o come?a com o impulso do baixo que pulsa com insist?ncia e marca rapidamente as pegadas. A imposi??o magistral do violonista principal invade, atingindo com as suas rajadas de vento gelado, e o intenso frio obriga a tremer e imp?e o ranger de dentes.

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“Estаs a ver esta zona aqui”, e mostra-me a parte superior do lado direito da pintura aberta. “Todo o quadro simboliza os supl?cios do pecador. Mas esta parte daqui, especificamente, е a imagem tоpica, usual, que fazemos do inferno. Enxofre a cair numa chuva cont?nua, montanhas destru?das e cobertas de escurid?o e pessoas num sofrimento indescrit?vel”.

“Nesta zona”, mostra a parte central com o dedo indicador desenhando uma elipse, “o gelo marca um grande contraste com o fogo de enxofre, porque dentro da conce??o do inferno como lugar de tortura eterna, um espa?o de gelo е um dos lugares mais horr?veis. V? como se racha aqui e o pobre homem fica ? merc? da аgua fria”.

“Nesta parte”, mostra a inferior, “estа aquilo que na arte chamamos de inferno musical, devido ? utiliza??o de instrumentos musicais como s?mbolos de tortura. Muito comum em certos pintores m?sticos. Estаs a ver esta gaita, mais para aqui estа o ala?de, aqui estа a harpa. E aqui, uma flauta. Consegues ver?”

Questiono-o se o inferno е mesmo assim. Pela janela noto que jа е de noite.

“Bom”, diz-me, “o desespero e o mart?rio, de certeza que est?o bem representados pelo autor, e aqui sobre este quadro, por parte do imitador, que е um intеrprete, como prefiro chamar-lhe”.

Pergunto-lhe como е que v? o inferno atravеs do que diz a sagrada escritura. N?o responde. Parece imerso numa reflex?o que escapa ao momento e ?s minhas d?vidas. Estа realmente a perguntar-se de como serа o inferno.

“O livro sagrado mostra o inferno como um lugar de incandesc?ncia perpеtua onde as almas ser?o lan?adas para os lagos de enxofre. Е assim que o pintor o retrata na parte superior desta obra. De facto, Cristo menciona-o constantemente, mencionando determinadas premissas, tais como o fogo que nunca se apaga, o lamento e o ranger de dentes, o castigo eterno”.

Fala sem olhar para mim, como se estivesse a falar consigo prоprio.

“Hа sеculos que se considera o fogo e o gelo, ou melhor dizendo, o calor e o frio, como os sofrimentos mais atrozes num lugar de castigo eterno. Um grande poeta da antiguidade descreve uma parte do inferno com a habitual chuva de chamas, e outro segmento, е o dos traidores, formado na sua plenitude por gelo. O demоnio, como regente deste espa?o de perdi??o, estа enfiado a partir da cintura na superf?cie gelada. Chora com os seus seis olhos e agita as suas seis asas enfurecidas”.

Imagino um inferno de gelo. O Hades seria um para?so em compara??o. Uma tortura sem fim no entorpecimento perene. Mas o que o meu corpo tolera agora е o calor. Um calor intenso que se prolonga ? medida que avan?a o ensinamento do padre Misael e que me oprime com o ar carregado pela sua aproxima??o, t?o prоximo. Reconhe?o as suas palavras como uma forma de sabedoria espiritual. N?o quero aborrec?-lo mais com a futilidade dos meus questionamentos. Pe?o a sua b?n??o e concede-ma com grande for?a, depois esculpe-me um beijo sagrado na boca.

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